“A pessoa com deficiência na
minha história de vida”
Quem é
a pessoa com deficiência na minha vida? Eu mesma!! Nasci
ouvinte e conversava normalmente, mas como resultado de uma enfermidade
adquirida na infância (sarampo) fui acometida de surdez profunda do ouvido
direito e parcial do esquerdo. Por ser deficiente auditiva oralizada, não fui
inicialmente aceita na Comunidade Surda, mesmo depois de aprender a Língua Brasileira
de Sinais (LIBRAS). Esta questão da comunicação sendo minoria dentro de uma
comunidade ouvinte é uma das razões por procurar formas e estudos que
viabilizem pontes onde encontramos barreiras de comunicação.
Por minha condição oralizada, sempre
consegui participar de ambas as comunidades, Surda e ouvinte. O interessante é
que, mesmo tendo resíduo auditivo, me sinto mais confortável me comunicando via
LIBRAS com os Surdos, que entre ouvintes, dialogando normalmente em português.
Enquanto Surda, me descobri parte de
uma comunidade dividida por fatores instrísecos à própria comunidade ou por
fatores externos a ela onde a descriminação da condição de não ouvir,
estabelecia por parte da Comunidade ouvinte, estabelece diferenciações por critérios
de definição que são questionados pelos Surdos.
Existe uma necessária observação
referente à alteridade Surda, pois ela perpassa a construção de cada trabalho
que aborde a importância de um lugar no mundo, de uma comunidade que como as
outras guarda características específicas e como toda especificidade exige uma
atenção e reposta específica.
A análise sociantropológica,
concebe a surdez como uma experiência visual (Skliar,1999). Segundo Skliar, a
experiência visual não se restringe apenas à uma modalidade de produção e
compreensão especificamente linguística ou singular de processamento cognitivo,
mas que se traduz em significações diversas, representações e/ou produções do
Surdo, seja no campo intelectual, linguístico, ético, estético, artístico,
cognitivo, cultural etc.
Faz-se necessário, então, um modelo
no qual o déficit auditivo não cumpra nenhum papel relevante, um modelo que se
origine e se justifique nas interações normais e habituais. Já é tempo de
entender a necessária adoção de um modelo que alcance a necessidade específica
da educação de pessoas surdas, de forma integral porém, mediada por uma
aquisição de língua e linguagem que permita ao Surdo desenvolver toda sua
potencialidade pedagógica pois não ouvir não restringe a capacidade do Surdo de
aprender. O que impele o Surdo à condição de semi-analfabetismo ou
analfabetismo funcional (em Língua Portuguesa) é a distância entre sua língua
materna quando este é alfabetizado em LIBRAS e a obrigatoriedade em ler e
escrever fluentemente em Língua Portuguesa quando esta não é sua língua materna.
Esta distância é tão injusta quanto
defender que os ouvintes, a partir de amanhã, tenhamos que escrever em uma
segunda língua. Da qual não tenham total domínio. O que aponta para a urgente necessidade
de perceber a identidade pedagógica do publico Surdo e assumir a identificação
sociocultural do Surdo para que, como defende o autor, o modelo pedagógico não seja uma obsessão
para corrigir o déficit mas a continuação de um mecanismo de compensação que os
próprios surdos, historicamente, já demonstraram utilizar. (Skliar, 1997, p.
140).
Enquanto Surda, que manipula LIBRAS e Língua
Portuguesa exerço constante malabarismo que exige um esforço ao quadrado para estar
simultaneamente participando de ambas as comunidades. É preciso pressupor a dualidade nesta realidade
pois, participar de duas formas de interação comunicativa, e não conseguir definir minha alteridade em
nenhuma delas pois existe uma exigência simultânea para que eu responda à cada
uma delas e às duas ao mesmo tempo e a contento.
Enquanto
Surda, me sinto honrada em fazer parte de uma comunidade inserida numa
comunidade maior e majoritariamente ouvinte pois, é um desafio abstrair do silêncio
a interação num ambiente
predominantemente baseado na comunicação áudio-visual requer por parte do Surdo
a capacidade de manipular a linguagem e a língua (seja escrita, de sinais ou
portuguesa) de forma a interagir de maneira dinâmica e desafiadora de um
contexto que não facilita a inserção das minorias.
Quando ingressei na Comunidade Surda
fiquei surpresa ao perceber que existem diversas denominações para as pessoas
que não ouvem. Existem diversas denominações e termos que variam de Surdos[1],
surdos, ouvintes, surdo oralizado, surdo puro e Deficiente Auditivo (DA).
Tantas formas de ser percebido só reafirma que a alteridade e identidades
surdas estão à revelia das esteriotipações, realizando-se de indivíduo a
indivíduo que antes de ser Surdo, é pessoa dotada como qualquer outra do direito
de ser e ser livre de rotulações que lhe prive de autodeclarar-se como entende
e não como é percebido.
Minha história não tem sua base na
surdez, mas na forma de abstrair dela meu lugar enquanto Pessoa com Deficiência
(PcD) sem porém perder de vista que minha condição de não ouvir não me desfavorece
se meu direito de desenvolver meus
direitos enquanto cidadão não forem deficientes.
Importa ressaltar que meu breve
histórico, objetiva calçar de defesa de um método que permita ao Surdo ser
protagonista de sua história e não estar à mercê da decisão de um sistema que
não compreende a formação de alunos surdos sem atentar ou respeitar porém suas
particularidades de aprendizagem.
Embora não tendo consciência do que
significava ser surda, desde criança eu já tinha habilidade em ler lábios,
destreza desenvolvida pela própria condição. Foi na sala de um Otorrino, quando
já tinha onze anos, que descobri que os ouvidos de alguns funcionam e de outros
não.
Esta consulta separou minha vida em
dois momentos, antes e depois de saber que eu era surda e estava encontrando
tantas dificuldades na aprendizagem por não conseguir ouvir. E, pela primeira
vez tomei conhecimento que eu não era a única pessoa surda no mundo mas...onde
estariam as outras?
A surdez foi um dos desafios, pois
após a primeira infância em franco desenvolvimento fui acometida de uma febre
alta por vários dias não diagnostica a causa. Após a insistência da febre por
dois meses, foi ministrada uma medicação para um sarampo que estava recolhido,
foi então que a febre passou. Porém várias sequelas, dentre elas a surdez, me
fez descobrir desde cedo que, quanto maior o obstáculo, mais aguerridos nos
descobrimos.
Após seis meses de cama,
retrocedi em meu desenvolvimento, não andava e nem sentava mais, voltei a usar
fraldas, chorava muito por causa de dores nas pernas. Meses de tratamento
recuperaram minha estabilidade física e habilidade de caminhar. Na primeira
série, mal conseguia acompanhar os demais alunos, o que resultou numa
aprendizagem fragilizada e superficial.
No ano seguinte, já em sala
especial com outras crianças deficientes conseguia acompanhar melhor. No
momento em que fui diagnosticada com surdez, já estava repetindo a terceira
série mas já numa sala regular, mas reclamava muito pois não conseguia acompanhar, pela dificuldade em
ouvir.
Neste
momento em que eu finalmente recebia um diagnóstico contundente sobre minha
condição sensorial, descobri que eu não estava sozinha, pois se o médico citou
a importância de estudar numa escola especial para surdos, então havia mais
surdos!
Justifico
este breve testemunho pois, quando se define os rumos da educação de uma
criança surda, está se definindo o contexto de toda sua formação. No meu caso,
como já era oralizada e desconhecia sequer a existência da LIBRAS, o médico
aconselhou a permanência na escola regular.
Naquele contexto, as próteses
auditivas eram ainda muito precárias e a insistência na minha permanência na
escola regular, um atraso significativo, gerado pela dificuldade de apreensão
apropriada dos conteúdos. A baixa produtividade qualitativa resultou numa
sequência de retenções.
Apenas quando cognitivamente minha
particularidade sensorial foi respeitada e considerada como fator primário na
condução de minha aprendicagem é que iniciou-se da fato minha alfabetização.
Fui matriculada numa sala para
crianças especiais e neste ambiente onde eram ensinadas crianças com diferentes
particularidades é que comecei a entender de fato a língua portuguesa. A sala
atendia vários perfis de dificuldade sensorial e mental. E, foi neste contexto
que encontrei o start de minha alfabetização.
Este momento em minha trajetória,
comum a de tantas outras crianças surdas, reiteram a urgente necessidade de se
ater às particulares necessidades de aprendizagem que precisam ser
expressamente consideradas desde o ingresso da criança na escola.
O atraso nesta percepção causa sérios
prejuízos à aprendizagem, alteridade e a formação global de qualquer pessoa, independente
de seu nível de dificuldade, particularidade ou deficiência.
Em casa, lia os livros do meu irmão
mais velho, embora sempre perguntado as dúvidas para minha mãe que foi como uma
segunda professora para mim.
Sempre gostei de ler e na minha
infância, não tinha muitos amigos, a maioria nem sabiam o meu nome, assim,
chamavam-me de ‘Menina quietinha’. Já na quarta série, comecei a frequentar a
biblioteca da escola onde passava horas lendo sozinha. Cheguei a fazer uma
lista e, na oitava série, já tinha lido mais de 100 livros. Gostava de
mergulhar nas histórias das quais ainda me vêm à memória: Xisto no espaço; A
ilha perdida; Meu pé de laranja lima; Meu pé de feijão; O menino e o porquinho;
O pequeno Polegar; Poliana Menina; Poliana Moça; Memória póstuma de Brás Cubas;
A casa verde etc. Difícil esquecer minhas melhorares companhias, afinal livros
não fazem acepção de pessoas e nos comunicávamos sem problemas.
Na década de 90, descobri num anúncio
no jornal sobre um curso de computação para Surdos. Lá encontrei outras pessoas
na mesma condição sensorial que a minha mas não na mesma condição de comunicação.
Fiquei estupefada! Descobri que os
Surdos se comunicavam com as mãos. O Professor ouvinte explicava através do
trabalho de uma intérprete. Como não conhecia LIBRAS, não conseguia acompanhar
a intérprete, então solicitei ao professor que falasse de frente para mim e
assim, consegui acompanhar o curso.
Uma nova descoberta me fez sentir
duplamente à deriva. Não estava inserida na comunidade ouvinte por não ouvir
bem, nem tampouco da comunidade Surda por não saber LIBRAS. Procurei então a Federação Nacional de
Educação e Integração dos Surdos - FENEIS-SP, onde deu-se início minha
caminhada rumo à autonomia!
Comecei a aprender LIBRAS no
curso básico, depois o intermediário e me apaixonei. Na época os materiais eram
muito simples e aprendia os sinais soltos sem contextualização. Não existia
vídeos de apoio como atualmente, nem tanta disponibilidade de apontamentos de
classificadores e outras variáveis de construção do conhecimento linguístico da
LIBRAS.
Diferente dos ouvintes
aprendizes de LIBRAS, eu encontrei mais facilidade (dada até por minha própria
condição sensorial) quanto às expressões faciais e classificadores.
Inserida agora na zona entre
Surdos e Ouvintes, descobri agora em contato com os Surdos que a diferença não residia
apenas na questão sensorial mas na separação entre grupos. Era frequentemente
questionada por outros surdos se eu era Surda ou Deficiente Auditiva e
‘acusada’ de gostar de ouvintes...como se gostar deles fosse um problema. Logo
fui categorizada como Deficiente auditiva e instruída a não me autodenominar de
surda pois transitava entre as duas realidades.
Ou seja...eu não era propriamente ouvinte
nem propriamente Surda. Residia na berlinda das comunidades que marginalizavam,
cada uma à sua maneira àqueles que não se apropriavam de suas particularidades.
Considerando-se que a ideia de
comunidade apoia-se na presença de vínculos simbólicos que congregam sujeitos,
congregando interesses comuns e propostas coletivas, os estudos Surdos contemplam
a disparidade entre o forte laço que aproximam pessoas com mesmos aspectos
sensoriais ao mesmo tempo que apontam a distinção realizada pela própria
comunidade de pares que por adotarem opções diferentes da LIBRAS para adoção de
comunicação, se restringem e sofrem diferenciações.
Autores como “Lane, Hoffmeister
e Bahan (1996) descartam ‘comunidade surda’ por considerarem muito inclusivo e
preferem a expressão ‘mundo surdo’, restringindo-o apenas àqueles que usam a
língua de sinais e se identificam com a cultura surda” (MAGNANI, 2007, p. 3)
Descobrir-se Surda numa comunidade
majoritariamente ouvinte foi um desafio gigantesco, mas residir num espaço
entre as comunidades que não conseguem ‘dialogar’ de forma a dirimir os
preconceitos extrínsecos e intrínsecos é devastador.
Portanto ainda enfrento o desafio de descobrir
como trabalhar com pessoas com múltiplas deficiências, pois durante os últimos cinco
anos trabalhei com crianças surdas e cegas, surdas e autista, paralisia cerebral
e outras.
[1] * os “Surdos” com s maiúsculo, portanto, são aqueles
formadores de uma entidade linguística e cultural. Sacks (1998, p. 16)